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18 de julho de 2013

O que apenas os historiadores podem fazer? - 1

O magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental, médio e superior só pode ser feitos por diplomados em História

Comentário sobre o Art. 4 do Projeto de Lei 4699/2012 


     Nossa postagem anterior analisou o Artigo 3 do Projeto de Lei 4699/2012, que define quem pode ser considerado um "historiador". Vimos que a legislação é muito clara: apenas os portadores de diploma de graduação, mestrado ou doutorado em História poderão ser considerados "historiadores", se o PL 4699/12 for aprovado.


     Agora, vamos examinar o Artigo 4 da mesma proposta de legislação sobre a profissão do historiador, para verificar quais são as prerrogativas exclusivas dos "historiadores", ou seja, aquilo que apenas os portadores de diploma de História poderão fazer, se esse projeto de lei for aprovado. 

Art. 4º São atribuições dos historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental, médio e superior;
II – organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História;
III – planejamento, organização, implantação e direção de serviços de pesquisa histórica;
IV – assessoramento, organização, implantação e direção de serviços de documentação e informação histórica;
V – assessoramento voltado à avaliação e seleção de documentos, para fins de preservação;
VI – elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos.

     Quem não tem experiência na interpretação de textos jurídicos pode pensar que esse Artigo 4 apenas indica aquilo que os historiadores podem fazer. Não é bem isso. Ao estabelecer que essa lista com seis itens é uma "atribuição dos historiadores", o texto do Projeto de Lei indica que só os diplomados em História podem desempenhar essas atividades.
     O parecer do deputado Policarpo sobre esse projeto de lei afirma isso de modo mais claro:

     De acordo com a proposta, o exercício dessa profissão fica reservado aos diplomados em História. 
     O texto do Projeto não oferece um conceito de Historiador, mas restringe o exercício da atividade aos graduados em curso superior e aos portadores de diploma de mestrado ou doutorado em História e atribui-lhes, privativamente, o magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental, médio e superior; a organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História; o planejamento, a organização, a implantação e a direção de serviços de pesquisa histórica; o assessoramento, a organização, a implantação e a direção de serviços de documentação e informação histórica e o assessoramento voltado à avaliação e à seleção de documentos, para fins de preservação, bem como a elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos.


     É importante deixar isso bem claro: as "atribuições dos historiadores" são as atividades que passam a ser proibidas, por lei, a quem não tem diploma de História, se o Projeto de Lei nº 4.699, de 2012, for aprovado. 
     O Projeto de Lei não estabelece nenhuma distinção entre as pessoas que possuam diploma de licenciatura em História, bacharelado em História, mestrado em História, doutorado em História. Todos eles são "historiadores" e possuem as mesmas atribuições (os mesmos direitos exclusivos). 
     Vejamos, então, alguns dos itens desse Artigo 4.

Art. 4º São atribuições dos historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental, médio e superior;

ou, no parecer do relator do Projeto de Lei, deputado Policarpo:

O texto do Projeto [...] restringe o exercício da atividade aos graduados em curso superior e aos portadores de diploma de mestrado ou doutorado em História e atribui-lhes, privativamente, o magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental, médio e superior;

     O Projeto de Lei inclui, nesse item, todos os níveis formais de ensino, pois a pós-graduação é ensinada nos estabelecimentos de ensino superior. Extensão universitária e especialização também são ministradas em estabelecimentos de ensino superior.
     O Projeto de Lei não prevê qualquer exceção. Somente os diplomados em História podem ministrar disciplinas de História.
     Como o Projeto de Lei não estabelece nenhuma distinção entre as pessoas que possuam diploma de licenciatura em História, bacharelado em História, mestrado em História, doutorado em História, todos eles têm direito a exercer o magistério da disciplina de História em qualquer nível. 


     Portanto, uma das consequências do Projeto de Lei 4699/2012 é que um bacharel em História, sem nenhum treinamento pedagógico, tem o direito de dar aulas de História para as crianças do ensino fundamental (tanto no primeiro ciclo quanto no segundo). Isso entra em colisão direta com tudo o que se pensa sobre educação.
     É importante, aqui, mencionar alguns números importantes.
     Desde a época em que este projeto de lei tramitava no Senado, já haviam sido indicadas algumas consequências graves dele, na educação: a proibição de que outras pessoas (sem diploma em História) ministrassem aulas de História no ensino fundamental e médio criaria um enorme déficit de professores, pois não há diplomados em História em número suficiente para cobrir todas as necessidades de ensino.
     "A oferta atual não vai dar conta da necessidade que vai gerar de professores com graduação de história nem de profissionais especializados. Vão criar mais um problema com essa lei, que atende a interesses corporativistas", afirmou em novembro de 2012 o sociólogo Simon Schwartzman, presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS). Segundo Schwartzman, utilizando dados do Censo de 2010, o Brasil necessitaria de cerca de 75 mil professores de História para atender às atuais necessidades dos ensinos fundamental e médio. "E, atualmente, apenas 28,5 mil têm formação na área e trabalham com educação", diz.

Simon Schwartzman

     Portanto, menos da metade dos professores que ministram a disciplina de História no ensino fundamental e médio possui diploma de História. A porcentagem dos que não têm diploma em História e ensinam História é maior no ensino fundamental do que no ensino médio. Será que há muitos diplomados em História desempregados, aguardando a aprovação do projeto de lei para ocuparem todas essas vagas? 

Fonte: http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4281&lang=en-us

     O Censo Demográfico do Brasil de 2010 identificou 75 mil pessoas com diploma em História. Dessas, 17 mil não tinham nenhuma ocupação remunerada de qualquer tipo. Se todas elas quiserem se dedicar ao ensino de História no ensino fundamental e no ensino médio (o que é pouco provável), haverá um déficit de APENAS 29 mil professores de História nas escolas. Cada professor, nesses níveis, dá aula para centenas de alunos. Como, depois da aprovação do Projeto de Lei 4699/12, pessoas sem diploma de História não poderão mais ministrar essas disciplinas, isso indica que milhões de alunos ficarão sem aula de História. Ou seja: a aprovação do PL 4699/2012 seria catastrófica para o ensino de História nos níveis fundamental e médio.
     Questionado, em 2012, sobre essas consequências, o senador Paulo Paim (PT-RS), autor do Projeto de Lei nº 4.699, de 2012, declarou que não haveria nenhum problema: "Não vai causar déficit algum. Pelo contrário, vai valorizar ainda mais a profissão. Agora, mais alunos vão estar habilitados a trabalhar nessas áreas", diz o senador Paim. Segundo ele, a reserva de mercado não vai se dar "da noite para o dia". 

Senador Paulo Paim

     Com todo respeito para com este parlamentar, é necessário dizer que a resposta do senador Paim é inadequada. Se for aprovada e se tornar lei, a atual proposta de regulamentação da profissão do historiador entra em vigor na data de sua publicação, como toda lei. Não há nenhum artigo no projeto de lei que diga que a "reserva de mercado" (como o próprio senador a denomina) só vai vigorar depois de alguns anos.
     Há muitas outras consequências estranhas dessa proposta de legislação. Como o PL 4699/2012 não estabelece nenhuma distinção entre as pessoas que possuam diploma de licenciatura em História, bacharelado em História, mestrado em História, doutorado em História, todos eles têm igualmente o direito a exercer o magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino superior (graduação, especialização, mestrado, doutorado). Um simples graduado em História poderá fazer valer esse direito. 
     Há uma certa discussão sobre se o "magistério da disciplina de História" inclui todos os tipos de História, ou não. Há pessoas que afirmam que História do Direito, História da Arte, História da Astronomia e outras disciplinas temáticas como essas não estariam incluídas e que, portanto, o Projeto de Lei não proíbe ninguém de ensiná-las.
     Mas devemos analisar se essa interpretação é adequada. Parece que não é.


     Os cursos de graduação em História não incluem nenhuma disciplina denominada apenas "História". Oferecem disciplinas denominadas "História Antiga" "História Medieval", "História Moderna", "História Contemporânea", "História da América", "História Latino-Americana", "História do Brasil Colônia", etc. Se apenas as disciplinas denominadas "História" tout court, são atribuições dos historiadores, então qualquer pessoa, sem diploma de História, pode ministrar nas universidades as disciplinas de "História Medieval", "História da América", "História Latino-Americana", "História do Brasil Colônia", etc. Mas se o ensino dessas disciplinas temáticas de História é uma atribuição (direito exclusivo) dos portadores de diploma em História, qualquer outra disciplina temática de História também está incluída: História do Futebol, História da Música, História da Computação, História da Mecânica Quântica, etc.
     Esta parece ser a interpretação correta, pois veremos, ao analisar outros itens das "atribuições dos historiadores", que eles incluem todo e qualquer tema histórico.


     É importante assinalar que o parecer do deputado Policarpo inclui explicitamente os historiadores da ciência e os historiadores da educação dentro dessa mesma legislação, pois ele afirma:

Neste sentido, é imprescindível a definição legal para o exercício da profissão de historiador, abrangendo igualmente os profissionais historiadores das Ciências e da Educação [...]

     Assim, de acordo com o Projeto de Lei 4699/2012, um diploma de História, em qualquer nível, é a chave mágica que abre todas as portas para que uma pessoa possa lecionar qualquer disciplina sobre qualquer tema de História. Um licenciado, bacharel, mestre ou doutor em História tem o direito exclusivo de ensinar sobre História da Educação, História das Ciências (Biologia, Matemática, Física, Astronomia, Lógica, Química...), História da Literatura, História da Filosofia, História de qualquer coisa. Ele é polivalente, ele domina todos esses conteúdos, ele é mais competente do que qualquer outra pessoa que não possui diploma de História... embora os currículos dos cursos de graduação e pós-graduação em História não tenham as disciplinas de História da Literatura, História da Filosofia, História da Física, etc.


     Portanto, se o Projeto de Lei 4699/12 sobre a profissão do historiador for aprovado em sua forma atual, ele proibirá que todos os atuais docentes de História da Arte, História da Matemática, História da Filosofia e as demais histórias de todos os campos do conhecimento humano continuem a exercer atividades de magistério dessas disciplinas, se não tiverem diploma de História; essas pessoas deverão ser substituídas, por lei, por qualquer pessoa que tenha algum diploma de História. 

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