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23 de outubro de 2013

Manifesto internacional da Divisão de História da Ciência e Tecnologia (DHST) da Internacional Union of History and Philosophy of Science and Technology (IUHPST) contra o Projeto de Lei 4699/2012 de regulamentação da profissão de historiador

A maior organização internacional de História da Ciência e Tecnologia apresenta críticas às restrições que o Projeto de Lei 4699/2012 pretende impor aos pesquisadores de história da ciência, história da arte e outras áreas semelhantes. 


"[...] em nome de nossos colegas brasileiros e da comunidade internacional de historiadores da ciência, nós recomendamos fortemente que a proposta de legislação seja rejeitada em sua forma presente, ou pelo menos emendada de modo a reconhecer e celebrar a amplitude e a diversidade de competências, conhecimentos especializados e formações educacionais dos muitos tipos de historiadores que constituem a profissão histórica."

Veja o texto completo desse manifesto, abaixo.



União Internacional de História e Filosofia da Ciência e da Tecnologia (IUHPST)
Divisão de História da Ciência e da Tecnologia (DHST)
Escritório do Presidente

22 de Outubro de 2013

Prezados senhores, senhoras, colegas e ilustres legisladores da Câmara dos Deputados e do Senado Federal do Brasil:

Escrevo em nome do Comitê Executivo da Divisão de História da Ciência e da Tecnologia (Division of the History of Science and Technology) da União Internacional de História e Filosofia da Ciência e da Tecnologia (International Union for the History and Philosophy of Science and Technology), em resposta à proposta de lei brasileira 4699/2012 de regulamentação da profissão histórica.

A União Internacional de História e Filosofia da Ciência e da Tecnologia é membro do Conselho Internacional de Ciências (International Council for Science, ICSU, da UNESCO). Sua Divisão de História da Ciência e da Tecnologia representa 49 organizações nacionais e mais de 20 comissões e seções científicas, e é o organismo internacional que representa a história da ciência e da tecnologia, e o líder mundial na sua promoção. Nosso recente Congresso Internacional de História da Ciência, Tecnologia e Medicina (International Congress of the History of Science, Technology and Medicine, ICHSTM), realizado em Manchester, no Reino Unido, atraiu 1.800 participantes de todo o mundo - incluindo um grande contingente do Brasil. Realmente, com base em uma notável proposta da delegação nacional do Brasil, nosso próximo Congresso Internacional em 2017 será realizado no Rio de Janeiro - nosso primeiro encontro a ser realizado no hemisfério sul. Esta é uma clara indicação da elevada estima com a qual a comunidade brasileira de história da ciência é considerada internacionalmente, e esperamos que o encontro do Rio de Janeiro seja tão bem sucedido quanto o de Manchester.


Sendo uma disciplina histórica, a história da ciência procura produzir interpretações equilibradas e objetivas sobre os significados históricos e culturais de instrumentos científicos, ideias científicas e práticas científicas em seus muitos e variados contextos de desenvolvimento e uso. Por causa da natureza especializada de grande parte do conhecimento científico e técnico, os historiadores da ciência geralmente precisam de treino científico ou matemático, assim como histórico. Sem tal conhecimento especializado, grande parte da história da ciência simplesmente não poderia ser escrita. Por isso, nossa profissão inclui estudiosos com diplomas em ciência, matemática, medicina, engenharia e outros campos, assim como muitos com diplomas em história. Embora muitos de nós - incluindo alguns dos membros mais eminentes de nossa profissão - não tenhamos títulos formais em história, todos nós encorajamos rigorosos métodos históricos, padrões e valores em nossa pesquisa e nosso ensino.

Exigindo que os professores de história e os historiadores com cargos públicos possuam qualificação formal em história, a proposta de legislação não reconhece de forma adequada a diversidade de habilidades exigida em um campo histórico especializado como o nosso. Suspeitamos que há muitos outros casos semelhantes - a história da arte é um exemplo óbvio. Como membros da corrente principal da profissão histórica, os historiadores da ciência são capazes de fazer enormes contribuições à pesquisa, ensino e preservação da herança cultural precisamente por causa da diversidade das formações educacionais das quais eles provêm. Por exemplo, o conhecimento do papel social e cultural da ciência, e a aquisição das ferramentas de pensamento crítico necessárias para avliar a ciência e para criar políticas científicas - certamente uma das habilidades fundamentais necessárias pelos jovens de hoje e pelos tomadores de decisão do futuro - são aprendidas melhor no estudo focalizado da trajetória da ciência, que um historiador da ciência pode proporcionar. Qualquer tentativa de produzir uma legislação limitadora terá profundas consequências negativas, deixando de reconhecer isso, e marginalizará a história da ciência e outros setores vitais e intelectualmente arrebatadores da disciplina histórica.

Portanto, em nome de nossos colegas brasileiros e da comunidade internacional de historiadores da ciência, nós recomendamos fortemente que a proposta de legislação seja rejeitada em sua forma presente, ou pelo menos emendada de modo a reconhecer e celebrar a amplitude e a diversidade de competências, conhecimentos especializados e formações educacionais dos muitos tipos de historiadores que constituem a profissão histórica.

Atenciosamente,

Efthymios Nicolaidis
Presidente IUHPST/DHST
Divisão de História da Ciência e da Tecnologia
União Internacional de História e Filosofia da Ciência e da Tecnologia

Tradução: Roberto Martins

Efthymios Nicolaidis

Veja o documento original, em inglês:

20 de outubro de 2013

"Memória como reserva de mercado": nova crítica de Pádua Fernandes ao Projeto de Lei 4699/2012 de regulamentação da profissão de historiador

O escritor Pádua Fernandes divulgou no dia 17/10/2013, no seu blog "O Palco e o Mundo", uma nova série de críticas à proposta de regulamentação da profissão de historiador (Projeto de Lei 4.699/2012). 


Já havíamos divulgado em Agosto as análises mais antigas de Pádua Fernandes:

Veja abaixo o seu novo texto, copiado do seu Blog:

Pádua Fernandes

Memória como reserva de mercado VI: a inconstitucionalidade do projeto da ANPUH


O projeto que cria uma reserva de mercado para os detentores de diploma em História (de graduação ou de pós-graduação), em lamentável iniciativa da Associação Nacional de História (ANPUH), recebeu em 7 de agosto de 2013 aprovação pelo Senado Federal, e hoje tramita na Câmara dos Deputados. No contexto da lógica corporativista que domina o sistema político nacional, esse projeto é mais um dos exemplos teratológicos de reserva de mercado, seja para filósofos, manicures, DJ, astrólogos etc.: 

Já escrevi como o projeto criaria uma barreira contra outras profissões para a pesquisa: sua abrangência impediria, por exemplo, que juristas pudessem escrever e ensinar sobre história do direito, físicos sobre a história da física etc. Escrevi, em outra ocasião, que "Uma objeção prática ao projeto pode ser construída a partir da noção de que, que em vários temas, o portador do diploma em História não é aquele que terá condições de escrever a melhor história, por falta do instrumental teórico de outros saberes.

E, mesmo que ele fosse o mais apto a escrever sobre os "temas históricos", na amplidão pretendida, faria sentido dar-lhe o monopólio dessa escrita? Em nome de que ética estabelecer-se-ia o monopólio desse reduzido grupo social sobre a construção da identidade da própria sociedade?"

É exatamente isso o que se pretende, e o historiador da ciência Roberto de Andrade Martins logrou verificá-lo: a Revista Paraibana de História, mantida pela seção daquele Estado da ANPUH, resolveu impedir a publicação, em suas páginas, de artigos de quem não possua o diploma em história. Martins descobriu que a revista tinha decidido aplicar o projeto de reserva de mercado antes mesmo de ele ser aprovado: 

Dezenas de manifestações, do exterior e do Brasil, levantaram-se contra o projeto, e podem ser lidas no blogue de Roberto Martins: 

Entre os opositores, está a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência 

Ainda não vi nenhuma declaração do Instituto Brasileiro de História do Direito, no entanto.

Na sede da SBPC, em setembro deste ano, ocorreu uma reunião para tratar de possíveis mudanças no projeto: 

A Sociedade Brasileira de História para Ciência chegou a um arranjo com a ANPUH, incluindo-se na reserva de mercado, isto é, reforçando o obscurantismo. A SBPC, com razão, rejeitou as mudanças. No blogue de Roberto Martins, pode-se ler sobre esses acontecimentos: 

Ele mesmo critica o projeto como "uma tentativa de restringir a atividade de pesquisa histórica, que deve ser totalmente livre, sem qualquer limitação, de acordo com os valores democráticos de nosso país e o princípio da liberdade acadêmica". 
problemas que a alternativa de projeto que ele mesmo elaborou não apresenta:  

Já apontei o descuidado e sumaríssimo trabalho da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal no ligeiro parecer sobre o projeto de reserva de mercado: 

Nesta breve nota, lembrarei dos parâmetros constitucionais sobre a liberdade profissional reafirmados em algumas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal. Ela está prevista, ressalte-se, entre os direitos e garantias fundamentais - não se trata de algo que deva ficar ao arbítrio de meros interesses corporativos, trata-se de uma previsão necessária para a cidadania. 

II

O inciso XIII do artigo 5º da Constituição da República dispõe que "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". Uma vez que a regra geral é a liberdade, as exceções devem ser previstas de forma restritiva, para que não haja fraude a esse direito fundamental. Essa restrição, afirma o Supremo Tribunal Federal, justifica-se desde que haja risco à sociedade no exercício da profissão por pessoas sem a habilitação necessária. O legislador não é livre na regulamentação das profissões: só poderá criar restrições ao exercício se elas se justificarem pelo interesse público.

No recurso extraordinário nº 511.961-SP, julgado em 17 de junho de 2009, sobre que já escrevi: 
o STF decidiu que era inconstitucional a exigência de diploma em jornalismo para os profissionais da imprensa. A liberdade profissional não era o único direito fundamental ferido, mas também a liberdade de expressão e de comunicação (artigo 5º, IV, IX e XIV) e de imprensa, especificamente no artigo 220, caput e § 1º. No quarto parágrafo da ementa do acórdão, a Corte deixou claras as limitações que pesam sobre o Poder Legislativo:

A Constituição de 1988, ao assegurar a liberdade profissional (art. 5o, XIII), segue um modelo de reserva legal qualificada presente nas Constituições anteriores, as quais prescreviam à lei a definição das "condições de capacidade" como condicionantes para o exercício profissional. No âmbito do modelo de reserva legal qualificada presente na formulação do art. 5o, XIII, da Constituição de 1988, paira uma imanente questão constitucional quanto à razoabilidade e proporcionalidade das leis restritivas, especificamente, das leis que disciplinam as qualificações profissionais como condicionantes do livre exercício das profissões.

Essas limitações são impostas pela Constituição da República e pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos; não é comum que o STF se preocupe com o controle de convencionalidade, mas aqui, ao contrário do que fez no caso da Lei de Anistia, ele cuidou dos deveres internacionais do Estado Brasileiro. Transcrevo parte do oitavo parágrafo da ementa:

A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu decisão no dia 13 de novembro de 1985, declarando que a obrigatoriedade do diploma universitário e da inscrição em ordem profissional para o exercício da profissão de jornalista viola o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que protege a liberdade de expressão em sentido amplo (caso "La colegiación obligatoria de periodistas" - Opinião Consultiva OC-5/85, de 13 de novembro de 1985). Também a Organização dos Estados Americanos - OEA, por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entende que a exigência de diploma universitário em jornalismo, como condição obrigatória para o exercício dessa profissão, viola o direito à liberdade de expressão (Informe Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de 25 de fevereiro de 2009).

A Corte Interamericana também pertence ao sistema de proteção dos direitos humanos da OEA, e não apenas a Comissão. Esse julgamento teve apenas um voto vencido, do Ministro Marco Aurélio.

Outro caso recente de grande repercussão foi o julgamento do recurso extraordinário nº 603.583-RS, em 26 de outubro de 2011. O Supremo Tribunal Federal, de forma unânime, considerou constitucional o exame da OAB, justamente por identificar interesse público na preservação da sociedade contra o risco que profissionais inabilitados causariam. O ministro relator, Marco Aurélio, lembrou que

[...] a liberdade de profissão não se resume à esfera particular. Certas profissões, como as de médico, engenheiro, arquiteto, se exercidas por pessoas despidas das qualificações técnicas necessárias, podem resultarem graves danos à coletividade. Foi essa lógica que conduziu à imposição de pena privativa de liberdade para o exercício ilegal de profissão, conforme o artigo 47 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941.

O Ministro ainda recordou dos índices que apontam um nível baixo do ensino superior em Direito no país. Sobre o assunto, para meus alunos de primeiro semestre, em geral lembro de antiga matéria da Carta Capital, "A miséria usa beca", em que um dos entrevistados, bacharel em direito que nunca foi aprovado no exame, afirmou que era analfabeto quando se formou: 

Afinal, é possível ingressar analfabeto no ensino superior, ao menos em universidades privadas 
já ocorreu, nesse tipo de instituição, até mesmo a defesa do analfabetismo contra os estudos de pós-graduação: 

Pouco antes desse importante acórdão, o STF julgou, em 1º de agosto de 2011, o recurso extraordinário nº 414.426-SC. Trata-se de outro caso histórico, relatado pela ministra Ellen Gracie, em que se decidiu, também de forma unânime, que não era constitucional exigir a inscrição na Ordem dos Músicos do Brasil para o exercício profissional dessa atividade artística. Além da ausência de perigo para a sociedade, a liberdade de expressão, prevista no inciso IX do artigo 5º da Constituição da República, era violada com aquela exigência que cerceava a manifestação artística.

III

O projeto de reserva de mercado para os portadores de diploma em história atenderia às exigências de razoabilidade e de proporcionalidade impostas ao legislador? Uma vez que a liberdade de profissão apenas pode sofrer exceções em razão do interesse público de evitar riscos advindos da falta de qualificação dos profissionais, parece-me que o projeto surtiria o efeito oposto ao pretendido: ele diminuiria o nível da formação profissional e se revelaria uma grande ameaça à educação no Brasil.

A conjugação dos artigos 4º e 5º do projeto faria, com que, se aprovado, uma série indefinida de atividades se tornasse monopólio dos historiadores com diploma em história:

Uma série indefinida, pois a expressão "temas históricos" pode abranger qualquer fato social. Vê-se que o projeto pretende fazer com que tais profissionais desalojem outros no magistério, nos museus e até nas tevês, provavelmente pensando em auferir alguns royalties do sucesso de telenovelas como Escrava Isaura... Note-se como se multiplicariam os conflitos jurídicos com arqueólogos, museólogos e outros profissionais que teriam que se abster dos "temas históricos" em suas atividades, o que é praticamente impossível. 

No campo da educação, o monopólio pretendido imporia intelectuais com formação totalmente inadequada, os historiadores com diploma em história, em campos inusitados. Estranhos à tabela periódica, tentariam explicar os períodos da história da química; a ignorantes em teoria da harmonia caberia ensinar história da música; a estrangeiros às categorias jurídicas atribuir-se-ia o monopólio dos diferentes campos da história do direito; gente incapaz de diferenciar entre um Giotto e um Tiziano se apossaria da história da arte etc.

Se aprovado o projeto, seria deveras histórica a contribuição da ANPUH para o declínio do ensino superior brasileiro. Embora tal declínio venha atender os interesses corporativos dos historiadores que tal associação representa, não se pode honestamente defender que ele corresponda ao interesse público, tampouco aos critérios constitucionais.

Tal é o ângulo, utilitário, do prejuízo à sociedade que o projeto geraria. Há outro, também presente na Constituição, que é o prisma da liberdade. As liberdades de expressão e de informação são violadas pelo projeto; nos casos que mencionei do Supremo Tribunal Federal, elas estavam sempre em jogo. Com este projeto, seria afetada também a liberdade de cátedra, prevista no artigo 205, II ("liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber").

Retomo o que escrevi na primeira parte desta nota. A ANPUH, no caso da Revista Paraibana, já demonstrou o que pretende: calar os outros profissionais em tudo que seja "tema histórico". Nesse projeto inaudito de censura, um historiador como o recém-falecido Gorender teria que trabalhar no exterior.

No campo das humanidades, a regra é que uma reflexão mais profunda sobre os objetos de saber adote uma perspectiva histórica, sem o que não se pode compreendê-los efetivamente. Por que as outras áreas das humanidades teriam que se curvar aos historiadores e renunciar a essa dimensão dos fatos sociais?

A ética desse projeto é a da apropriação privada do que é comum que, epistemologicamente, só poderia mesmo levar a uma negação da interdisciplinaridade. Um dos pontos risíveis é que a legislação pretendida violaria o que o próprio estatuto da ANPUH afirma defender (a livre pesquisa em história); ademais, o presidente de tal associação, em um exemplo engraçadíssimo de contradição performativa, gosta de citar Foucault, que não poderia ter elaborado a tese da História da loucura se estivesse sob a égide de uma norma obscurantista semelhante: 

Epistemologicamente, o projeto não faz sentido. Profissionais de diversas áreas e formações fazem história, e não apenas os formados nesta área, e isso, que denota a importância fundamental da disciplina, parece não ser bem entendido por aqueles que não fizeram outra coisa senão a estudar.

O projeto tem inconstitucionalidades gritantes, é epistemologicamente contrário às próprias características do saber histórico, que não se presta a monopólios corporativos; e, politicamente, revela-se profundamente antidemocrático: por ferir liberdades fundamentais e por converter essa importante atividade de construção do comum e da identidade social, a história, em monopólio de certo grupo de profissionais, que aparentemente deseja se dedicar ao oficialismo historiográfico com o amparo da legislação.

Pádua Fernandes

Blog de Pádua Fernandes

Postagem original: 

10 de outubro de 2013

Manifesto da American Historical Association, contra o projeto de lei 4699/2012 de regulamentação da profissão de historiador

O presidente atual, o ex-presidente e a futura presidente da American Historical Association (Associação Americana de História, AHA) enviaram à Câmara dos Deputados uma correspondência alertando sobre problemas do projeto de lei 4699/2012 


"Um sistema mais aberto parece bem mais preferível do que um que exclui completamente as pessoas que não têm uma credencial muito específica. Nós entendemos que tal rigidez é necessária para cirurgiões, pilotos e assim por diante, mas é difícil elaborar um argumento semelhante para a pesquisa e ensino da História; e, na ausência de tal argumento convincente, acreditamos que qualquer regulamentação das profissões históricas deveria ser mais amplamente inclusiva do que esta lei parece ser."

A American Historical Association (AHA) é a maior e mais antiga sociedade de historiadores dos Estados Unidos, tendo sido fundada em 1884 e recebido credenciamento do Congresso em 1889. Possui atualmente cerca de 14.000 membros, que pertencem não apenas aos Estados Unidos mas a numerosos países do mundo inteiro. Um dos princípios que a American Historical Association defende é a liberdade acadêmica.

Veja o texto completo desse manifesto:


4 de Outubro de 2013

Sr. Henrique Eduardo Alves
Presidente da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados
Gabinete 539, Anexo IV
Câmara dos Deputados, Praça dos Três Poderes
CEP: 70160-900
Brasília, DF, BRASIL

A quem possa interessar,

Como alguns historiadores brasileiros solicitaram a opinião da Associação Histórica Americana (American Historical Association, AHA) sobre o Projeto de Lei 4699/2012, de regulamentação da profissão de historiadores no Brasil, estamos escrevendo para expressar nossas preocupações sobre alguns de seus aspectos.

Nós somos o atual presidente, ex-presidente imediato, e a presidente-eleita da Associação Histórica Americana, mas falamos aqui apenas por nós mesmos; o Conselho da AHA não discutiu este assunto. 

Reconhecemos e aplaudimos a intenção do projeto de lei de assegurar que apenas pessoas devidamente qualificadas deem aulas, organizem exposições e executem outras funções relacionadas à História. Reconhecemos também que promulgar regulamentos nesta área ou não promulgá-los envolve complicadas negociações entre garantir que esse trabalho seja bem feito e incentivar uma participação ampla na discussão pública e na educação.

Não há solução única ou perfeita para estas questões, e nós certamente não temos a pretensão de recomendar um arranjo institucional particular para uma sociedade com a qual nenhum de nós está intimamente familiarizado. E, é claro, também compreendemos que, numa sociedade democrática, a tarefa de legislar é uma tarefa de fazer acordos.

No entanto, existem alguns aspectos da legislação proposta que nos chocam e preocupam. Como tudo o que já aconteceu pode ser considerado parte da “história”, os limites da disciplina são intrinsecamente vagos, e muitos tipos de competências são legitimamente relevantes. Numerosas contribuições valiosas foram feitas a essa disciplina por pessoas com formação em Antropologia, Sociologia, Geografia, Literatura, Direito e assim por diante, bem como por algumas pessoas com titulação em ciências naturais, e algumas sem absolutamente qualquer diploma. Além disso, a natureza da pesquisa e da comunicação histórica é tal que permitir mais participantes no campo beneficia os que já estão envolvidos: enquanto os sapatos feitos pelo sapateiro A podem diminuir as oportunidades para o sapateiro B, uma pessoa adicional oferecendo uma perspectiva nova e esclarecedora sobre algum tópico histórico importante deveria ser uma notícia bem-vinda para os estudiosos que já estão envolvidos em analisá-lo. Mais importante ainda, a adição da voz daquela pessoa enriquece o público, que se beneficia de uma possível discussão mais vigorosa da história. A proposta de lei parece impedir pessoas sem diplomas em História de manter a maioria dos empregos nesse campo, mesmo se houver ampla evidência de que eles são capazes de dar importantes contribuições, ou se eles já o tiverem feito.

Um sistema mais aberto parece bem mais preferível do que um que exclui completamente as pessoas que não têm uma credencial muito específica. Nós entendemos que tal rigidez é necessária para cirurgiões, pilotos e assim por diante, mas é difícil elaborar um argumento semelhante para a pesquisa e ensino da História; e, na ausência de tal argumento convincente, acreditamos que qualquer regulamentação das profissões históricas deveria ser mais amplamente inclusiva do que esta lei parece ser. Conseguir essa inclusão de uma forma responsável poderá implicar em distinguir entre as funções relacionadas à História para as quais existem muitas alternativas possíveis de qualificação, em relação a um diploma em História, e as funções para as quais existem poucas ou mesmo nenhuma alternativa.

Nós esperamos que nossas observações sejam úteis para a avaliação da proposta de lei.

Atenciosamente,

Kenneth Pomeranz
University of Chicago
Presidente

Jan Goldstein
University of Chicago
Presidente-eleita

William Cronon
University of Wisconsin-Madison
Ex-Presidente imediato

(tradução: Roberto Martins)

Kenneth Pomeranz e Jan Goldstein

Veja a correspondência original, em inglês:


Professor Michael Matthews se pronuncia contra o Projeto de Lei 4699/2012 de regulamentação da profissão de historiador

O professor Michael Matthews, conhecido líder da área de História e Filosofia da Ciência aplicada à Educação, Presidente da Comissão de Ensino Conjunta (Interdivisional Teaching Comission) das divisões da União Internacional de História e Filosofia da Ciência (International Union for History and Philosophy of Science) da UNESCO, manifestou-se contra o Projeto de Lei 4699/2012.


Em nome da Comissão, o professor Matthews criticou a obrigatoriedade da realização de pós-graduação específica para o desenvolvimento de pesquisas e para o ensino de História da Ciência. 

"A Comissão está espantada e desapontada com essa proposta. Ela fará a pesquisa acadêmica sobre história da ciência recuar no Brasil, e prejudicará a reputação do país no exterior."

Veja o documento completo abaixo.


4 de Outubro de 2013

Prezado membro do Congresso Brasileiro,

Sou Presidente da Comissão de Ensino Conjunta (Interdivisional Teaching Comission) das divisões da União Internacional de História e Filosofia da Ciência (International Union for History and Philosophy of Science) da UNESCO.

A Comissão foi informada a respeito de um projeto de lei que está diante do Congresso Brasileiro e que tornaria ilegal que estudiosos que não tivessem diploma em História da Ciência ensinassem esse assunto em universidades brasileiras. A Comissão está espantada e desapontada com essa proposta. Ela fará a pesquisa acadêmica sobre história da ciência recuar no Brasil, e prejudicará a reputação do país no exterior. 

É louvável que o Congresso se preocupe com a qualidade do ensino e da pesquisa desse campo vital, mas a lei proposta certamente prejudicará e diminuirá a qualidade dessa disciplina no Brasil. Alguns dos mais importantes pesquisadores atuais e do passado e escritores sobre história da ciência vieram de fora do domínio daqueles treinados formalmente nessa disciplina. Poderiam ser mencionados muitos nomes, mas é suficiente indicar os dos professores Gerald Holton (Departamento de Física, Harvard University), Michael Ruse (Departamento de Filosofia, Florida State University), William Brock (Departamento de Química, Manchester University) e Mario Bunge (Departamento de Filosofia, McGill University). Nenhum deles possui treino formal em história da ciência; seu treino formal é em física, química e filosofia. Em conjunto esses quatro estudiosos contribuíram talvez com 30 importantes livros sobre história da física, história da biologia e história da química. Uma consulta do Google Scholar mostrará mais de 1.000 citações de seus trabalhos. São líderes internacionais na disciplina. No entanto, estranhamente, nenhum deles teria a permissão de assumir uma posição de ensino no Brasil se essa proposta se tornasse lei. Isso seria uma grande perda para a pesquisa e para o estudo no Brasil. 

Temos a esperança de que o Congresso Brasileiro terá a sabedoria de rejeitar essa proposta de legislação. Aprovar tal legislação prejudicaria muito a reputação acadêmica do Brasil na comunidade internacional.

Atenciosamente,

Professor Michael R. Matthews

(tradução: Roberto Martins)

Michael R. Matthews

Veja a carta original, em inglês:


8 de outubro de 2013

Crítica de Roberto de Andrade Martins à proposta de emenda da ANPUH e da SBHC ao projeto de lei 4699/2012 de regulamentação da profissão de historiador

A Associação Nacional de História (ANPUH) e a Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) realizaram um acordo e apresentaram uma nova proposta de emenda ao PL 4699/2012. Essa proposta é inaceitável. Veja os motivos abaixo.


No dia 24 de setembro a Associação Nacional de História (ANPUH) divulgou em seu site (e também no Facebook) que havia feito um acordo com a Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) e elaborado uma proposta conjunta de emenda substitutiva ao Projeto de Lei 4.699/2012 de regulamentação da profissão de historiador. 

No dia 02 de outubro, a Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) enviou um informe aos seus associados, confirmando e justificando o acordo feito com a ANPUH. Até o momento em que este documento estava sendo redigido (08/10/2013), no entanto, estranhamente não constava nenhuma notícia sobre o assunto no site da SBHC. Apenas a ANPUH divulgou esse comunicado da SBHC, no dia 04/10:
http://www.anpuh.org/informativo/view?ID_INFORMATIVO=4341

Veja a seguir algumas críticas a respeito dessa proposta conjunta ANPUH + SBHC. O texto completo da proposta dessas associações está reproduzido ao final desta postagem. 

“Sou contra a proposta da ANPUH e da SBHC, porque representa uma tentativa de restringir a atividade de pesquisa histórica, que deve ser totalmente livre, sem qualquer limitação, de acordo com os valores democráticos de nosso país e o princípio da liberdade acadêmica.” Roberto de Andrade Martins

Roberto de Andrade Martins

Além de inúmeros problemas em seus detalhes, a proposta da ANPUH e da SBHC apresenta os seguintes defeitos gravíssimos:

(1) Dificultaria, no futuro, o desenvolvimento da História das Ciências em nosso país - fato com o qual a SBHC deveria se preocupar.
(2) Mantém o caráter corporativo da proposta anterior, estabelecendo uma reserva de mercado para pessoas que podem não ter qualificação para desempenhar as funções que lhes serão privativas.
(3) Continua a restringir a liberdade de desenvolver atividades na área de História, como o projeto anterior, apesar do que afirmam a ANPUH e a SBHC.

Descrevo abaixo, de modo mais claro, esses pontos.

(1) A proposta da ANPUH e da SBHC dificultaria, no futuro, o desenvolvimento da História das Ciências em nosso país - fato com o qual a SBHC deveria se preocupar.

O acordo entre a ANPUH e a SBHC modificou a proposta do Projeto de Lei 4699/2012, de modo a incluir entre os "historiadores" (definidos no Artigo 3) não apenas as pessoas que possuem diploma de graduação ou pós-graduação em História, mas também os que efetivamente se dedicam à História há pelo menos 5 anos, e os que tenham pós-graduação em programas nos quais exista "linha de pesquisa dedicada à História". É um avanço em relação à redação original, mas um avanço muito tímido. 

Suponhamos que um professor universitário de Literatura, de Arte, de Astronomia, de Matemática, de Direito ou de qualquer outra área, que não preenche esses requisitos, queira começar a se dedicar (depois da aprovação dessa malfadada lei) à história de sua disciplina. A única possibilidade de ser aceito como "historiador" e poder desempenhar atividades de historiador é fazer uma pós-graduação em História tout court, ou em programa de pós-graduação que tenha linha de pesquisa histórica. Não é prevista qualquer outra possibilidade. Mesmo se ele tiver 50 anos de idade e reconhecida trajetória acadêmica em sua área, precisará voltar aos bancos escolares para obter um diploma que lhe permita se dedicar à história de sua disciplina. Isso me parece INACEITÁVEL e representaria uma barreira que prejudicaria muito, no futuro, o desenvolvimento da história das ciências no Brasil. 

Podem me responder que seria, de fato, desejável que essas pessoas adquirissem uma formação específica história para poderem se dedicar à história de suas disciplinas. Muito bem: convençam essas pessoas, mas não as obriguem a fazer uma pós-graduação, se elas não quiserem. As pessoas devem ter liberdade para seguir ou não aquilo que outras pessoas lhes recomendam fazer. 

Por outro lado, é evidente que a proposta da ANPUH e da SBHC estabelece uma formalidade ridícula, que não tem nada a ver com a competência acadêmica. De acordo com essa proposta, uma pessoa que conclua uma pós-graduação em um programa de mestrado ou doutorado no qual exista uma "linha de pesquisa dedicada à História" adquire, ipso facto, o direito de se registrar como historiador e desempenhar todas as atividades que são exclusivas dessa profissão (podendo inclusive se candidatar a cargos públicos de historiador, etc.). Mas a proposta da ANPUH e da SBHC apenas indicou uma condição do programa de pós-graduação, e não da pessoa diplomada por esse programa. Suponhamos que um programa de pós-graduação em Física tenha uma linha de pesquisa sobre História da Física. Qualquer pessoa diplomada por esse programa, mesmo se apenas tiver estudado Teoria das Cordas, poderá se registrar como historiador e exercer legalmente todas as atividades previstas no Artigo 4 do projeto de lei. Não é absurdo? Por outro lado, se um programa de pós-graduação, por acaso, não tiver uma linha de pesquisa com o nome "história", ou "história de...", os seus mestres e doutores não terão qualquer direito de serem considerados historiadores, mesmo se tiverem feito diversas disciplinas históricas e/ou desenvolvido sua pesquisa sobre um tema histórico. Outro absurdo. 

(2) A proposta da ANPUH e da SBHC mantém o caráter corporativo da proposta anterior, estabelecendo uma reserva de mercado para pessoas que podem não ter qualificação para desempenhar as funções que lhes serão privativas.

De acordo com essa proposta, 
Art. 5º Para o provimento e exercício de cargos, funções ou  empregos de historiador, é obrigatória a comprovação de registro profissional nos termos do art. 7º desta Lei.
Tal registro é permitido aos "historiadores" definidos pelo Artigo 3 do projeto de lei, que já foi comentado acima.
Art. 6º As entidades que prestam serviços em História manterão, em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços, historiadores legalmente habilitados. 

Todas as entidades que prestam serviço em História (por exemplo: museus, arquivos e outras) seriam obrigadas a ter "historiadores" (definidos no Artigo 3) em seus quadros, ou pagar serviços prestados por tais "historiadores". 

O Censo Demográfico do Brasil de 2010 identificou 75 mil pessoas com diploma em História.

Todos esses 75.000 podem se registrar como "historiador", de acordo com essa proposta, e ocupar cargos em museus, arquivos e outras instituições, tenham ou não um treino adequado para desempenhar essas atividades. Devemos nos lembrar que uma grande proporção deles fez licenciatura em História. Todos esses 75.000 (além de outros que se diplomaram depois de 2010) poderão prestar, por exemplo, "assessoramento voltado à avaliação e seleção de documentos, para fins de preservação", mesmo se nunca estudaram como se faz isso. 

Além disso, com a nova redação dada através do acordo entre ANPUH e SBHC, os novos cargos serão disputados também por historiadores da ciência, da educação, da arte, do direito, da filosofia, etc. Todos terão os mesmos direitos a participar dessa reserva de mercado, tenham ou não um treino adequado para desempenhar essas atividades

Essa proposta é absurda. Ela não pode contribuir para a melhora da qualidade dos serviços em história, e sim para a criação de vagas que ficarão à disposição de muitas pessoas incompetentes. 

(3) A proposta da ANPUH e da SBHC continua a restringir a liberdade de desenvolver atividades na área de História, como o projeto anterior, apesar do que afirmam a ANPUH e a SBHC.

Há pessoas que continuam a afirmar que essa proposta (como a antiga) não proíbe ninguém de se dedicar a atividades históricas. Pode-se questionar a inteligência ou a honestidade intelectual dessas pessoas. De fato, vamos analisar o texto:

Art. 1º Esta Lei regulamenta a profissão de historiador, estabelece os requisitos para o exercício da atividade profissional e determina o registro em órgão competente.
Art. 2º É livre o exercício da atividade de historiador, desde que atendidas as qualificações e exigências estabelecidas nesta lei.

Será tão difícil assim compreender esse texto? Vejam bem, o Artigo 2 não afirma "É livre o exercício da atividade de historiador", e sim "É livre o exercício da atividade de historiador, desde que atendidas as qualificações e exigências estabelecidas nesta lei."

Essa frase pode ser reescrita, sem mudança de significado, da seguinte forma: "Aqueles que atendam às qualificações e exigências estabelecidas nesta lei poderão exercer a atividade de historiador." Há, portanto, condições para exercer a atividade de historiador. Quais são essas qualificações e exigências? As que estão estabelecidas no próprio projeto de lei, que determina no seu Artigo 3 quem pode ser considerado um "historiador". E somente eles podem exercer a atividade de historiador. Que atividade é essa? Tudo aquilo que está descrito no Artigo 4, incluindo "elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos". Qualquer projeto ou trabalho, sobre qualquer tema histórico, sem exceção. Incluindo também "organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História". Qualquer publicação, exposição ou evento, sobre qualquer tema histórico. Sem exceção.

O projeto de lei antigo tinha esse caráter restritivo; e sua nova redação pela ANPUH e pela SBHC mantém esse caráter restritivo. 

Pode-se alegar que a redação do projeto de lei não está muito boa, mas que a intenção é que ninguém seja proibido de fazer nada. Nesse caso, a solução é muito simples: basta mudar a redação do projeto de lei, em dois pontos. Mudar o Artigo 2, deixando apenas: 
Art. 2º É livre o exercício da atividade de historiador
e alterar o caput do Artigo 4, colocando: 
Art. 4º São atribuições não exclusivas dos historiadores.

Basta mudar isso, se a intenção REAL for a de não proibir ninguém de se dedicar às atividades históricas.

Se a ANPUH e a SBHC persistirem em afirmar que não é necessário mudar a redação e que o projeto de lei não proíbe ninguém de desenvolver as atividades descritas no Artigo 4, podemos então perguntar por que motivo foi feita uma mudança no primeiro inciso desse Artigo, eliminando das atribuições dos "historiadores" o ensino de História no nível superior. 

No projeto original, constava:

Art. 4º São atribuições dos historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental, médio e superior;

Na nova proposta, consta:

Art. 4º São atribuições dos historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, desde que seja cumprida a exigência da LDB quanto à obrigatoriedade da licenciatura;

Desapareceu a menção ao ensino superior. 

Se aquilo que consta no Artigo 4 é apenas uma listagem daquilo que os "historiadores" podem fazer, sem proibir outras pessoas de realizar as mesmas atividades, então não era necessário fazer nenhuma mudança. Vejamos como a SBHC justificou essa alteração do texto, na mensagem à qual me referi acima:

"3. No que se refere ao ensino de história, mantivemos a posição há muito explicitada de que, no caso do magistério superior, a autonomia universitária é o valor fundamental, sendo inaceitável reservar a atuação nesse nível de ensino apenas aos historiadores com registro profissional; e, no caso do magistério na educação básica, a preparação em curso de licenciatura deveria ser explicitamente prevista."

Vamos analisar cuidadosamente essa afirmação. A alínea I do Artigo 4 foi alterada, no acordo entre a ANPUH e a SBHC, porque a SBHC manteve a posição de que é " inaceitável reservar a atuação nesse nível de ensino apenas aos historiadores com registro profissional". Se o texto não fosse mudado, o projeto estabeleceria que apenas os historiadores com registro profissional poderiam atuar no ensino superior de História. Está claro? Pois é. Esse exemplo mostra que a própria SBHC admite que os itens que integram o Artigo 4 estabelecem atividades que só podem ser exercidas pelos historiadores com registro profissional.

Por fim, se a ANPUH e a SBHC insistirem ainda em dizer que o projeto de lei não proíbe ninguém de se dedicar a qualquer atividade histórica, podemos fazer um desafio aos membros das diretorias dessas associações: registrem em cartório uma declaração de que eles (como pessoas físicas) se comprometem a indenizar as pessoas que porventura sejam proibidas de exercer atividades históricas, no caso de aprovação desse projeto de lei; e que também se comprometem a não fazer uso de medidas protelatórias para pagar essas indenizações, depois de condenados. Uma declaração registrada em cartório, como essa, mostraria a honestidade intelectual e boa vontade dessas pessoas. 

Comentários finais

Repetindo o que escrevi no início: a proposta da ANPUH e da SBHC apresenta inúmeros problemas em seus detalhes. Apontei apenas três de seus defeitos gravíssimos.

Algum tempo atrás, divulguei uma sugestão de emenda substitutiva ao Projeto de Lei 4699/2012:

Essa minha sugestão elimina qualquer aspecto proibitivo do projeto de lei, permitindo no entanto o registro profissional de historiadores e a abertura de concursos para contratação de historiadores, que seriam os pontos principais defendidos pela ANPUH inicialmente.

Sou contra a proposta da ANPUH e da SBHC, porque representa uma tentativa de restringir a atividade de pesquisa histórica, que deve ser totalmente livre, sem qualquer limitação, de acordo com os valores democráticos de nosso país e o princípio da liberdade acadêmica. 

Roberto de Andrade Martins


Proposta da ANPUH e da SBHC de emenda substitutiva ao Projeto de Lei 4699/2012:

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1º Esta Lei regulamenta a profissão de historiador, estabelece os requisitos para o exercício da atividade profissional e determina o registro em órgão competente.
Art. 2º É livre o exercício da atividade de historiador, desde que atendidas as qualificações e exigências estabelecidas nesta lei.
Art. 3º O exercício da profissão de historiador, em todo o território nacional, é assegurado aos:
I – portadores de diploma de curso superior em História, expedido por instituição regular de ensino;
II - portadores de diploma de curso superior em História, expedido por instituição estrangeira e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação;
III - portadores de diploma de mestrado ou doutorado em História, expedido por instituição regular de ensino, ou por instituição estrangeira e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação;
IV - portadores de diploma de mestrado ou doutorado obtido em programa de pós-graduação reconhecido pela CAPES que tenha linha de pesquisa dedicada à História;
V – aos profissionais diplomados em outras áreas que tenham exercido, comprovadamente, há mais de 5 (cinco) anos, a profissão de Historiador, a contar da data da promulgação da lei.
Art. 4º São atribuições dos historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, desde que seja cumprida a exigência da LDB quanto à obrigatoriedade da licenciatura;
II – organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História;
III – planejamento, organização, implantação e direção de serviços de pesquisa histórica;
IV – assessoramento, organização, implantação e direção de serviços de documentação e informação histórica;
V – assessoramento voltado à avaliação e seleção de documentos, para fins de preservação.
VI – elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos.
Art. 5º Para o provimento e exercício de cargos, funções ou  empregos de historiador, é obrigatória a comprovação de registro profissional nos termos do art. 7º desta Lei.
Art. 6º As entidades que prestam serviços em História manterão, em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços, historiadores legalmente habilitados. 
Art. 7º O exercício da profissão de historiador requer prévio registro na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do local onde o profissional irá atuar.
Art. 8º Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação. 

Fonte de informação sobre o acordo entre ANPUH e SBHC