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3 de agosto de 2013

Historiador Francisco Marshall critica projeto de lei que garante exclusividade para o exercício da profissão (Projeto de Lei nº 4.699, de 2012)

"O teor do projeto em discussão vai produzir uma casta cartorial e tecnocrática para controlar a produção livre do conhecimento"


O jornal Zero Hora publicou no dia 03/08/2013 uma matéria do professor Francisco Marshall, historiador e arqueólogo, professor do Departamento de História do IFCH-UFRGS, criticando o Projeto de Lei 4699/2012 que regulamenta a profissão do historiador. Veja o texto completo, abaixo.
  
Francisco Marshall

Historiador Francisco Marshall critica projeto de lei que garante exclusividade para o exercício da profissão (Projeto de Lei nº 4.699, de 2012)

Ora tramita em regime de urgência no Congresso Nacional o PL 4.699/2012, do senador Paulo Paim (PT), que trata da profissionalização do historiador. O projeto assegura aos historiadores diplomados prerrogativas exclusivas e interdições que atingirão a pesquisa e a difusão do conhecimento histórico. O privilégio pretendido encaminha conflitos com os historiadores temáticos, que tratam da História da Arte, das Ciências ou da Literatura, entre muitas especialidades de consistente tradição e relevância. Estes conflitos, decorrentes da luta corporativa por reserva de mercado, já motivaram protestos até da Academia Brasileira de Ciências e da SBPC, e abrem questões de interesse amplo e grave: há benefício social na regulamentação da profissão de historiador, e riscos reais em sua inexistência? Caso existam, estes riscos são tais que justifiquem os transtornos prometidos pelo exclusivismo? Deve a memória histórica ser atribuição exclusiva de certo segmento técnico? Com que vantagens e desvantagens? Qual a cientificidade da História, e quais os usos deste saber? Eis, portanto, ocasião para discutirmos a relação entre História, historiador e sociedade, e para pensarmos algo sobre trabalho, ciência e liberdade.

A questão central é sobre a natureza e a potência do conhecimento histórico. Há um método que se aprende apenas tirando diploma? A posse deste método assegura grau superior e exclusivo para o exame do passado? Esta exclusividade resulta em bem social? Pode o desenvolvimento da investigação histórica ser tolhido de toda a parcela da sociedade não diplomada, e confiada a uma guilda de fornecedores do conhecimento?

Os gregos inventaram a História e logo suas pretensões de cientificidade e de utilidade. Heródoto (484 a.C.? – 425 a.C.) usou o termo historíe (história) para designar as enquetes que fez junto aos povos que visitou, sobre mito, memória, fatos e costumes. Uma geração após, Tucídides (460 a.C.? – 395 a.C.) descreveu metodologia rigorosa para a obtenção do conhecimento sobre os eventos recentes e as causas da guerra; reagindo a Heródoto, Tucídides não adotou a palavra “história”, mas foi neste gênero de pesquisa e narrativa que se situou; o historiador quis legar à humanidade um “tesouro para sempre” (ktêma eis aei): o conhecimento das razões que levam à guerra e, logo, referências para que a prudência política evite este flagelo. A humanidade, porém, seguiu guerreando, pois, como anotou G.W.F. Hegel (1770-1831) no prefácio à Filosofia do Direito (1820), “a coruja de Minerva começa a voar apenas quando cai o crepúsculo”, e a História segue tão inútil quanto o voo tardio da coruja. Sofisticada, apurada, pretensiosa e inútil.

Heródoto

A escrita da História aprimorou-se na erudição de autores como Giambattista Vico (1668-1744) e Edward Gibbon (1737-1794), e no rigorismo cientificista do século 19. Leitor de Hegel, Karl Marx (1818-1883) quis converter a História em ciência prospectiva e identificou nas tensões das relações de produção a real causa da dialética; esta ciência até hoje ilumina a compreensão histórica, mas sua principal utilidade foi justificar dezenas de milhões de assassinatos, obra dos regimes totalitários socialistas que, nutridos por “ciência” histórica, aceitavam quaisquer meios pelo fim maior de redimir o proletariado rumo ao comunismo e, sobretudo, preservar o poder. Pouco antes, um tirano austríaco quase destruiu a Europa, nutrido por várias ciências, entre as quais a História, alma do nacionalismo suprematista. Quando a História vira autoridade, com o nome usurpado de ciência, a opinião torna-se verdade, cegueira e violência. Não pode um indivíduo, partido ou corporação deter o monopólio da verdade, da memória ou da narrativa histórica, sob risco de perder-se a liberdade e a ciência da complexidade do mundo.

No século 20, com os aportes da Antropologia, da Arqueologia, das Ciências Econômicas, da Ciência Política, da Filosofia, da História da Arte, da Linguística, da Psicologia, da Semiótica, da Sociologia, e de outras disciplinas, a História transformou-se e por fim superou a pretensão de hegemonia de um certo tipo de explicação histórica, materialista. Hoje, o historiador tem ao seu dispor um bom repertório de teorias e vocabulários; não há o menor consenso metodológico, e é bom que assim seja. Talvez o núcleo metodológico da disciplina siga sendo aquele herdado de Tucídides e aperfeiçoado em 1898 por Langlois e Seignobos: a crítica documental rigorosa e a determinação das fontes e fatos, princípios compartilhados com o Jornalismo e outras ciências, pouco ensinados nos cursos de História atuais. A História é uma expressão das Ciências Humanas, em diálogo com áreas correlatas e aberta à sociedade, que deve ser capaz de historiar, como cada um de nós deve ter memória; a pretensão de monopólio é um insulto à sua natureza interdisciplinar, bem como ao convívio harmônico com as demais disciplinas e a sociedade.

Chegamos, pois, ao ponto: a quem e para que serve a pretensão de monopólio corporativo que pauta esta regulamentação profissional? Além da finalidade medíocre e insustentável de garantir reserva de mercado, vai-se produzir outra casta cartorial, controlando um ofício livre e inofensivo, dando ilusão de poder a tecnocratas improdutivos, burocratizando o ofício, perturbando e ofendendo profissionais dignos, inibindo a evolução acadêmica, sem qualquer ganho social. A sociedade, caso conceda esta reserva de mercado, abrirá mão de parte importante da liberdade e fomentará litígios desnecessários nas ciências patrimoniais, hoje, aliás, muito mais complexas do que o imaginam os arautos do oficialismo historiográfico. A ABC e a SBPC, em carta de 10 de julho deste ano, em que pedem a imediata suspensão da tramitação do projeto de lei 4.699/2012, argumentam, corretamente, que “existem diversas áreas de pesquisa e ensino cujo nome inclui “História” e que, no Brasil e no exterior, são atividades que podem ser desenvolvidas por profissionais de outras áreas que não tenham diploma em História.” Isto inclui todas as histórias temáticas, que não são ensinadas nem como assunto nem como metodologia de pesquisa nos cursos de História no Brasil, e, especialmente, a área de História da Arte, em franco desenvolvimento e titular de tradição acadêmica própria e importante. A ANPUH (Associação Nacional de História), em documento dirigido à Sesu/MEC, postulou que as áreas de “História da Arte e História, Teoria e Crítica da Arte devam convergir para a denominação História – Bacharelado e História – Licenciatura”, mas estes assuntos, todavia, não compõem os currículos de ensino universitário de História no Brasil; eis indício preocupante dos fins a que pode se prestar esta regulamentação, provocando conflitos ilegítimos com outras áreas acadêmicas e com ameaças ao sentido de liberdade necessário à vida social e ao progresso da humanidade.


Francisco Marshall

Divulgado também no Jornal da Ciência email:
http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=88516

2 comentários:

  1. Não se deve negar a importância nem o legado dos Historiadores sem diploma do passado. O que não devemos esquecer é que os tempos são outros, onde as exigências concernente a qualquer profissão são incomparavelmente maiores,onde há a necessidade crescente de que se estabeleça diretrizes para a maioria das atividades inclusive para a de historiador. A indiferença seria o não reconhecimento de tal labor, pois sabe-se que no Brasil muitas profissões já são regulamentadas. A grande e pertinente pergunta é, porque impedir a regulamentação da profissão de Historiador? Muitas das proposições contrárias a regulamentação não tem se quer sentido.

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  2. Prezado Claudivan Sousa, a oposição ao atual projeto de regulamentação da profissão do historiador se deve aos problemas de redação da proposta, que tem problemas graves, expostos em várias das postagens de julho deste blog. É importante adquirir competência para exercer qualquer atividade, é claro. É importante ter competência, em particular, para se tornar professor e pesquisador em história do direito, história da arte, história da astronomia, história da literatura, história da educação, história da psicologia. A posse de um diploma em História não garante essa competência, já que os cursos de História não incluem formação em todas essas áreas. Há outros problemas do projeto de lei, além destes. Não foi apenas em um passado remoto que pessoas sem títulação em História deram grandes contribuições à área. Veja o caso do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas, por exemplo, constituído principalmente por cientistas sociais. Veja o caso do professor Ulpiano T.Bezerra de Meneses, da USP, que foi a grande "estrela" do seminário da ANPUH em Natal. Ele não é diplomado em História... Há centenas de outros casos, de pessoas mais jovens, que são competentes em pesquisa histórica sem ter diploma em história. Geralmente são citados os "grandes nomes", e essas pessoas conquistaram seu grande prestígio ao longo do tempo, não têm mais 30 anos de idade...

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